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Last Mile x First Mile e mudança na logística da reciclagem de papel

Por executivos da Associação Nacional dos Aparistas de Papel (Anap)

A pandemia de Covid-19 provocou uma transformação estrutural profunda em diversos setores da economia brasileira. Entre os segmentos impactados está o setor de reciclagem de papel, que viu sua cadeia de suprimentos ser reorganizada em função do crescimento exponencial do comércio eletrônico e das entregas domiciliares.

O setor de reciclagem de papel, tradicionalmente dependente de um fluxo previsível de materiais provenientes do comércio varejista e atacadista, encontra-se hoje diante de um cenário novo. A maior parte das embalagens, que antes se concentravam em pontos comerciais específicos do comércio, agora se dispersam por milhões de residências, criando desafios logísticos inéditos e oportunidades para novos modelos de negócio na economia circular.

Esta transformação representa uma mudança paradigmática na forma como pensamos a logística reversa e a gestão de resíduos recicláveis no Brasil. Os associados da ANAP têm acompanhado de perto essas mudanças e seus impactos no mercado.

Antes da pandemia, o setor de reciclagem de papel operava dentro de um modelo logístico bem estabelecido e previsível. As embalagens seguiam um fluxo linear e concentrado: produtos eram transportados da indústria para centros de distribuição, depois para atacadistas e, finalmente, para o varejo. Neste processo, as embalagens secundárias e terciárias permaneciam concentradas em pontos específicos da cadeia.

Este modelo criava pontos de concentração ideais para a coleta de materiais recicláveis. Os aparistas de papel desenvolveram suas operações em torno dessa lógica de concentração, estabelecendo rotas eficientes que incluíam supermercados, lojas de departamento e estabelecimentos atacadistas, onde grandes volumes de embalagens estavam disponíveis em locais de fácil acesso.

Nesse período, 30% dos insumos obtidos pelos aparistas provinham diretamente do comércio varejista e atacadista. Outros 30% eram originários de ferros velhos e sucateiros, 25% da indústria (resíduos pós-industriais) e apenas 15% de cooperativas de catadores e coleta domiciliar.

A chegada da pandemia acelerou drasticamente tendências que já estavam em desenvolvimento no comércio brasileiro. O isolamento social forçou milhões de consumidores a migrar para plataformas digitais, transformando o e-commerce de uma opção conveniente em uma necessidade essencial.

Plataformas como Mercado Livre, Amazon e Magazine Luiza, além de aplicativos de delivery como iFood, Rappi e Uber Eats, experimentaram crescimentos exponenciais em seus volumes de transações. O modelo de negócio do e-commerce introduziu uma mudança fundamental na logística de distribuição: o conceito de Last Mile ou última milha.

Esta mudança teve implicações profundas para o fluxo de embalagens. As embalagens secundárias e terciárias, que antes permaneciam nos pontos comerciais onde eram facilmente coletadas pelos aparistas, passaram a ser entregues junto com os produtos nas residências dos consumidores.

A descentralização do fluxo de embalagens criou uma série de desafios operacionais para os aparistas. O modelo de negócio tradicional, baseado na coleta eficiente em pontos de alta concentração, tornou-se menos viável quando o material passou a estar disperso em milhões de residências.

A coleta domiciliar apresenta desafios logísticos fundamentalmente diferentes da coleta comercial. Enquanto um supermercado pode gerar várias toneladas de papelão por semana em um único local, uma residência típica pode gerar apenas alguns quilos por mês. Para tornar a coleta domiciliar economicamente viável, seria necessário atender centenas de residências para obter o mesmo volume que um único ponto comercial fornecia anteriormente.

Essa descentralização trouxe uma consequência direta: o aumento do volume de resíduos recicláveis gerado nas residências, especialmente embalagens secundárias e terciárias. Isso dificultou a coleta e triagem desse material, já que os aparistas não conseguem operar de forma eficiente em áreas residenciais, onde o volume por ponto de coleta é baixo e disperso.

Com a redução na disponibilidade de material de fácil acesso, os aparistas viram seus custos operacionais aumentarem enquanto seus volumes de coleta diminuíam. Esta pressão na oferta de insumos resultou em uma reação nos preços pagos pelas indústrias recicladoras aos aparistas.

Neste novo cenário, emergiu com força o conceito de First Mile –  a primeira milha da logística reversa. Se o Last Mile representa a entrega final do produto ao consumidor, o First Mile representa a coleta inicial dos resíduos recicláveis nas residências. E nesta etapa, os catadores de materiais recicláveis assumiram um papel protagonista.

Os catadores, que tradicionalmente operavam como um complemento ao sistema de reciclagem, tornaram-se peças fundamentais na nova cadeia de suprimentos. Eles são os únicos agentes capazes de realizar a coleta domiciliar de forma economicamente viável, devido à sua capilaridade, conhecimento local e modelo operacional adaptado para pequenos volumes. Esta mudança representa não apenas uma alteração operacional, mas uma valorização do papel social e econômico dos catadores na economia circular brasileira.

No entanto, esta nova importância dos catadores também expôs as fragilidades estruturais que este segmento enfrenta. A maioria dos catadores opera com equipamentos inadequados, falta de financiamento para investimentos em infraestrutura e baixa eficiência operacional.

O material proveniente do comércio tradicionalmente apresenta características superiores em termos de limpeza, organização e padronização. Já o material residencial apresenta desafios de qualidade, resultando em custos adicionais de triagem e limpeza.

A escassez relativa de insumos de fácil acesso e alta qualidade provocou uma reação imediata nos preços do mercado de reciclagem de papel. As indústrias recicladoras viram-se obrigadas a ajustar os preços pagos aos aparistas para garantir o suprimento necessário.

Os aparistas que conseguiram adaptar-se rapidamente ao novo cenário, desenvolvendo parcerias com cooperativas de catadores ou investindo em coleta domiciliar, encontraram oportunidades de negócio interessantes. Aqueles que permaneceram dependentes exclusivamente do modelo tradicional enfrentaram pressões significativas em suas margens de lucro.

O cenário atual representa tanto desafios quanto oportunidades para o setor de reciclagem de papel. A transformação em curso não é temporária, mas sim uma mudança estrutural que exige adaptações permanentes de todos os agentes da cadeia.

Para os aparistas, a adaptação ao novo cenário requer investimentos em novas competências e modelos operacionais. As cooperativas de catadores precisam de apoio para desenvolver suas capacidades operacionais e gerenciais, incluindo investimentos em equipamentos, capacitação técnica e acesso a financiamento.

O poder público tem um papel fundamental na criação de infraestrutura adequada para coleta seletiva e na implementação de políticas de educação ambiental. Para as empresas de e-commerce, existe uma oportunidade de liderança na criação de sistemas de logística reversa mais eficientes.

A transformação digital do comércio brasileiro criou uma revolução na cadeia de reciclagem de papel. O que começou como uma mudança nos hábitos de consumo durante a pandemia evoluiu para uma reestruturação completa de um setor que emprega milhares de pessoas e processa milhões de toneladas de materiais anualmente.

O futuro do setor será determinado pela capacidade de todos os agentes envolvidos – aparistas, catadores, indústrias, governo e consumidores – trabalharem juntos para criar um sistema mais eficiente, sustentável e inclusivo. A transformação já começou, e os próximos anos serão decisivos para definir como este novo modelo se consolidará.

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ANAP Associação Nacional dos Aparistas de Papel

A coluna da ANAP é assinada por Marcelo Bellacosa, presidente da ANAP e CEO da SCRAP Ambiental; João Paulo Sanfins, vice-presidente da ANAP e sócio-diretor do Grupo CRB (Comércio de Resíduos Bandeirantes); Gabriel Vicchiatti, conselheiro da ANAP e CEO da Vicchiatti Ambiental; e Fábio Suetugui, conselheiro da ANAP e gerente da Repapel.
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